Wednesday, March 25, 2009

O passado faz o presente


A velha premissa de que aprendemos com os nossos erros é, na verdade, uma sábia e cômoda forma de dizer que nosso presente está intimamente ligado com o nosso passado. Ora, isso não é difícil compreender em nível individual, e está no nosso cotidiano. Se a forma com que você estudou para o vestibular não fez você passar, no ano seguinte a estratégia e a dedicação têm de ser outra. Se a cantada não conquistou a moça, o rapaz tende a mudar suas palavras e sua forma de interceptação. Se aquela empresa deu prejuízo, a aposta na bolsa de valores deverá ser mais criteriosa da próxima vez. Se o bebê toma choque com o dedo na tomada, é difícil que ele se meta a repetir o erro! Exemplos clássicos e corriqueiros. Nenhuma novidade até aí.

Na verdade, novidade nenhuma em parte alguma dessas linhas. Apenas uma interpretação de ocorridos na atualidade e que não conseguimos fazer analogias com os exemplos citados. A história do mundo, em sua complexa linha estrutural, nos atinge em cheio no presente. Seja para nos deixar viciados, seja para nos deixar alerta, seja para nos acomodar... enfim, nos afeta. E o que poderia ser bom, é visto como ruim.

Vila Velha, Espírito Santo. Jovens da rede estadual de ensino protestam pelo incremento da carga horária das aulas, que foi aumentada em uma hora. O protesto é incômodo: palavras de ordem, cartazes, faixas, apitos... parecem militantes natos de um movimento social politizado. Quem dera o fossem! Estão lá pedindo para o governo voltar atrás em uma tentativa de dar um primeiro passo, mesmo que muito pequeno, em direção a priorizar a educação pública no país. O argumento dos alunos é o de que muitos trabalham e estão chegando atrasados no emprego. Vêem a contradição? Eles estão na escola para que consigam, no futuro, conseguir um bom emprego. E quando o governo colabora com essa formação, incrementa a política social, é criticado. Muito mais fácil seria que a manifestação fosse em prol de um diálogo entre governo do Estado e as federações da indústria e do comércio para que colaborem e não descontem dos pagamentos dos jovens (coisa que a Secretaria de Educação já diz estar fazendo). Mas é fácil entender este fato mediante décadas de descaso com a educação... um momento de inflexão como este é sempre um incômodo para os que o sofrem. Que Cristovam Buarque não tome conhecimento do ocorrido! Assim, em seus gritos e devaneios, os estudantes reclamam que não foram ouvidos e que o governo foi vertical em sua decisão. Discordo pelo simples fato de verticalidade significar tomar uma decisão sem consulta. Pois bem: o clamor por educação pela sociedade brasileira dispensa qualquer consulta, apesar de, além disso, sabermos da existência de um conselho de educação em que conta com representação da sociedade civil.

Outro fato interessante. A Igreja tentando influenciar na política. Como aceitar que uma instituição que, quando detinha um poder político absurdo, como na Idade Média, abusou do bom senso em nome de uma moralidade cristã e fez atrocidades, enriqueceu com o dinheiro das indulgências, matou quem a questionava ou quem queria dar uma explicação um pouco mais racional às coisas? Pode-se argumentar que o clero daquela época nada tem haver com o atual. Concordo. Só que enquanto Instituição, a Igreja perdeu credibilidade, assim como o absolutismo, e as nações, para prevenirem-se disso, instituíram, especialmente no ocidente, o Estado laico como premissa. Não adianta esnobar a opinião do Presidente da República dizendo que ele precisa de um assessor de teologia para que ele tome a decisão de culpabilizar ou não um médico que necessitou fazer um aborto de gêmeos numa criança de 9 anos, sob o rico de morte das três crianças. A Igreja tem, sim, o direito de ser ouvida enquanto parte componente da sociedade civil gramsciniana (e o é, tendo em vista a participação de suas entidades em conselhos gestores espalhados por todo o Brasil, por exemplo), mas não deve achar que pode impor sua política cristã na política contemporânea. Portanto, o Papa ir ao continente africano clamar pelo fim da propaganda do uso de camisinha, num continente em que 1/3 da população tem AIDS é um pouco de soberba demais. O Estado não mais a ouve como antes. Na verdade, ela, a Igreja, já não é mais tão Estado, como antes. Mas isso, ela ainda não entendeu.

Outro ponto definitivamente conflitante é a questão de cotas em universidades públicas. Vejam, não creio que devemos culpar todos os brancos em nome de um passado cruel que estes proporcionaram aos negros. Mesmo porque “branco” é uma raça em processo de extinção no Brasil. Aquele que não tem negritude correndo em seus vasos sanguíneos, dê a primeira chibatada! Concordo, porém, com a culpabilização das elites pelo estado miserável que vive o pobre hoje em dia. E não digo isso em nome de uma hipócrita opinião socialista. Digo isso em face de uma história em que foi dada ao rico a chance de enriquecer mais, e ao pobre a chance de não enriquecer nada. Ora, ambos agarraram suas chances e fizeram delas maravilhas. Hoje, o quadro é esse. Não culpo a consciência do rico. Não poderia ele ficar pobre, abrir mão de sua riqueza, em nome dos milhões de pobres que o país carregava. Culpo o Estado por não entender que a Declaração Universal dos Direitos Humanos dá a todos os cidadãos a mesma importância, mas quem deveria prover isso era ele próprio: o Estado. Assim, diante de uma história de descaso com a questão da pobreza, determinar cotas para pobres na universidade é inconstitucional para os ricos, já que esta dá a todos os brasileiros as mesmas condições para ingressar no ensino público superior. O engraçado é que durante todas estas décadas não se ouvia dos ricos que a exclusão social, a pobreza, a fome, a exploração da mão de obra, a desigualdade socioeconômica, o racismo, tudo isso também era inconstitucional. Mas a conveniência, meus amigos, é a melhor de todas as propulsoras de reivindicação de direitos! Sob a ótica do pobre, ter vagas separadas para a classe é proporcionar um atalho ao longo e pedregoso caminho da inclusão social. É fácil para um rico, que procurou o ensino privado durante toda a vida, valorizar o ensino superior público quando este é melhor. Afinal, o que se argumenta é que o governo deveria investir mais no ensino fundamental e médio para que não houvesse necessidade de determinar as cotas. Vêem a conveniência? Antes, quando não havia as cotas, não havia ricos reclamando por melhoria do ensino público de qualidade. Agora há! Há de melhorar o ensino público de base sim, mas, como vimos nos parágrafos acima, a população, em especial os estudantes, não acostumaram com essa idéia.

Na saúde pública a situação não é diferente. A medicina curativa, patrocinada pelos grandes laboratórios, indústrias farmacêuticas e tecnológicas, sempre se mostrou eficaz na assistência curativa e inútil na prevenção das doenças. É óbvio que o ideal seria que as pessoas não adoecessem, para não precisarem de assistência médica com tanta freqüência. Demorou um século inteiro para que se implantasse uma idéia revolucionária no Brasil de um programa nacional que incentivasse uma medicina que promovesse saúde e não curasse doenças – o Programa Saúde da Família. Os gastos diminuiriam, a população seria mais saudável, os profissionais seriam menos frustrados. Mas isso não ocorre. A população se acostumou com o que viveu durante toda a história: uma cartela de remédios, um exame de alta complexidade, uma cirurgiazinha básica para “melhorar” sua saúde. Os profissionais também, acostumados com as máximas da eficiência e eficácia defendidas pela medicina curativa, não absorvem com a devida postura a necessidade de se investir nessa idéia. O Estado, então, por pressão tanto da população como das classes profissionais, uma pressão veiculada por uma mídia que cansa de mostrar que não entende nada de saúde pública, investe astronômicos valores em hospitais e especialistas, e põem em secundo plano aquilo que constitucionalmente deveria ser prioridade: a atenção primária. A consciência coletiva sobre saúde como ausência de doença é uma lástima que possui uma saúde de ferro, e deve, infelizmente, sobreviver por mais décadas e décadas.

Poderíamos ficar aqui descrevendo centenas de outros exemplos de como uma história marcada pela opressão e pela exclusão afeta em cheio os habitantes do presente. No Brasil, principalmente, já não é uma desculpa plausível dizer “temos uma democracia muito jovem para que possamos ver as mudanças no ideal e cultura política de nossa sociedade”, como era de praxe ouvir. Já temos quase 25 anos de democracia. Mas como esperar uma sociedade ativa e propositiva diante do histórico processo multivariado político que viveu o Brasil. Ditadura, democracia, ditadura, democracia tudo isso banhado por alguns “ismos”, como clientelismo, populismo, assistencialismo, coronelismo, desenvolvimentismo... tantos fatores negativos tinham que gerar um “ismo” central pela população: ceticismo.

Tomara que a história que descrevemos aqui como pedra no caminho de nossa nação seja substituída pelo presente atual, que já é história. Espero poder ler um texto, de preferência do meu filho, dizendo que as décadas de 1990 e 2000 foram marcadas por inflexões não muito exitosas no caráter político-social da sociedade civil brasileira, mas que graças a essas inflexões, começou a ser gerado um novo idealismo social, capaz de substituir o ceticismo por esperança, e, posteriormente, substituir esperança por satisfação. Mas sem nunca deixar de lado o pensamento de que participação é conquista, e não dádiva, como nos diz Pedro Demo, e por isso exige reivindicação constante, e não um outro “ismo” indesejável: o conformismo.